Este texto, aqui reproduzido em parte, foi publicado originalmente como prefácio à obra “OLIVEIRA, Sheila da Costa e MAGALHÃES, Maria Carmem Côrtes (organizadoras). Histórias de Vida: Patrimônio Imaterial da UCB. Volume 2. Coleção Memohist. Brasília, Ed. Universa, 2012″.
Organizações são sistemas vivos, dinâmicos, criados e forjados nas relações sociais e comunicacionais, em constante fluxo e transformação. São espaços ao mesmo tempo de convivência e de oposição de diferenças, construídos ora na dinâmica da colaboração ora nos enfrentamentos competitivos. São instâncias políticas, dialéticas e dialógicas. É pelas conversações, pelos processos de negociação e de decisão que constroem seu ethos, sua identidade, sua cultura, suas crenças e seus valores.
Ainda que, nas origens, fundadores tenham planejado o percurso, ainda que tenham imprimido as marcas e os carismas orientadores de sua caminhada, é no trilhar dos passos, é nos processos diuturnos de escolha entre alternativas de ação e do próprio agir, que as organizações marcam sua presença no tempo e no espaço.
Sob essa visão, é compreensível que pensemos na improbabilidade de observar, identificar, captar, registrar e compartilhar os elementos constitutivos das trajetórias organizacionais. É até mesmo justificável que muitos abandonem ou sequer enfrentem o desafio de desvendar como foram sendo consolidadas suas práticas e seus pontos de referência.
(…)
Normalmente, o tratamento dado à história empresarial é moldado pelos filtros do discurso institucional, que mais ocultam do que revelam, ao privilegiar o simples registro das efemérides e ao tratar os protagonistas e demais atores e construtores da história como se fossem personagens de um “museu de ceras”, intocáveis, inumanos, como bem relatou Eduardo Galeano (2011) na apresentação de sua clássica trilogia Memória do Fogo, ao se referir ao desconforto provocado pelas aulas de história que frequentou quando jovem. Nesses casos, costumam imperar as análises da empresa a partir da sua evolução econômica e dos empresários como atores econômicos, promotores e geradores das realidades empresariais, merecedores de títulos, bustos e estátuas.
Também se encontram com frequência, em muitos estudos de história empresarial, relatos inconsistentes, que acabam por se afastar da própria história, da verdade, do rigor científico e dos processos de interação disciplinar. Como alerta Sáenz (apud Betancourt Zárate, 2003, p. 201), isso geralmente decorre de “falhas no processo de investigação histórica em razão de estudos superficiais de fontes secundárias, de um reativo desleixo no tratamento dos arquivos, de interpretações supérfluas, de discursos apologéticos, e de reflexões oriundas de interesses grupais, entre outras”.
Outros relatos históricos empresariais enveredam pelo caminho da propaganda pura e simples, exaltadora de feitos e grandes conquistas, incensados pela necessidade de demonstrarem que as empresas ali retratadas têm, além de responsabilidade socioambiental, responsabilidade histórica para com seus públicos de relacionamento.
(…) se diferencia dos tradicionais registros de “história empresarial” para se aproximar das novas concepções de “história organizacional”. Essas abordagens partem do pressuposto de que:
“Toda organização em suas diferentes dimensões, componentes e níveis tem história, mobilidade e significância. O indivíduo como tal (nível individual) tem historicidade; os diferentes grupos configurados no seio da organização como departamentos, seções, grupos formais, grupos informais (nível grupal) têm historicidade; e a organização como um todo tem historicidade. Evocam-se, então, as noções de sistemicidade e sinergia, admitindo que o sistema e seus componentes tenham mobilidade e historicidade; e que podem ser alcançados graus superiores de compreensão quando buscamos conhecer, interpretar e interrelacionar o processo histórico de cada uma das suas partes, avançando até configurações coletivas e sinérgicas (a organização como sistema)” (BETANCOURT ZÁRATE, 2003, p. 206).
A história tratada dessa forma permite outros atalhos ao indivíduo que se relaciona com a organização, “com destaque às referências mnemônicas feitas por meio da expressão oral” (MEIHY, 2010, p.179). Permite ainda o acesso a narrativas individuais, sociais ou organizacionais estruturadas a partir de memórias relacionais, que por si só são seletivas dentre boas e más experiências desenvolvidas (NASSAR, 2008, p.111-112, apud COGO, 2011). Essa riqueza trazida pela diversidade de olhares e expressões pode contribuir para a construção de sentido, de tal forma que se reforcem o sentimento de pertencimento e as ações humanísticas das organizações, além de sustentar os novos enfoques administrativos baseados na gestão do conhecimento, do capital intelectual e da reputação acumulada por uma organização.
Referências bibliográficas:
BETANCOURT ZÁRATE, Gilberto. De la história empresarial a la história organizacional: In: Innovar. Revista de Ciencias Administrativas y Sociales, julio-diciembre, número 022, Bogotá, Universidad Nacional de Colômbia, pp. 199-210, 2003.
COGO, Rodrigo Silveira. A elaboração discursiva da memória organizacional: estudando o storytelling. In: ComTempo: Revista Eletrônica do Programa de Pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, Volume nº 2, Ano 3 – Dezembro, 2011.
GALEANO, Eduardo. Memória do Fogo – Nascimentos. Viana do Castelo: Livros de Areia Editores, 2011.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Memória, história oral e história. Oralidades, In: Revista do Núcleo de Estudos em História Oral da USP, São Paulo, USP, n.8, p.179-191, julho/dezembro de 2010.
NASSAR, Paulo. Relações Públicas na construção da responsabilidade histórica e no atualização da memória institucional das organizações. 2.ed. São Caetano do Sul, SP: Difusão, 2008.